Para a segunda edição desta rubrica, conversamos com o Professor Agostinho Guedes, cuja escolha pelo curso de Direito foi feita sem muita ponderação, em apenas dez minutos.
Lembra-se de algum momento da sua infância ou adolescência que despertou a sua curiosidade sobre a área do Direito?
Quando estava prestes a acabar o meu 5.º ano do Curso Geral dos Liceus (atual 9.º ano de escolaridade), tinha de escolher a área em que pretendia continuar os estudos (no Curso Complementar). Nesse sentido, dirigi-me à secretaria do meu liceu (o Liceu de Alexandre Herculano) para ver as áreas disponíveis e, em cada uma delas, quais as cadeiras obrigatórias e as opcionais. Eu já tinha decidido que não queria seguir a área das Ciências, pelo que me restava a escolha entre as Letras e as Humanísticas (não sei se já se chamava assim, na altura). Embora gostasse (e ainda goste) de Inglês e de Alemão não me apetecia seguir Letras (Germânicas, como se chamava na altura). Tenho ideia de que as cadeiras obrigatórias eram Língua Portuguesa, Filosofia e Introdução à Política; percebi que, escolhendo Direito, teria História (obrigatória) e, de entre as várias opcionais, poderia ter Inglês e Alemão. Não hesitei na escolha. Creio que demorei uns dez minutos (ou menos). Até aí, não me recordo de ter qualquer ideia do que era o Direito, não conhecia nenhum profissional dessa área e creio que nunca tinha pensado no que queria fazer depois do liceu. Deve ter sido o maior golpe de sorte de toda a minha vida.
De que forma é que o seu percurso académico o moldou a nível pessoal?
Há um autor (creio que americano) que uma vez disse "um homem não é o mesmo depois de fazer um curso de Direito" e eu concordo completamente. A formação jurídica, bem como os percursos académico e profissional que se lhe seguiram, alteraram a minha estrutura de pensamento, a minha visão do mundo e a minha atitude fundamental perante as outras pessoas. Tornei-me mais analítico, mais racional, mais atento à realidade, mais capaz de distinguir entre a "espuma dos dias" e o que é (deve ser) essencial, entre a verdade e a mentira, entre factos e juízos (capacidades muito úteis, hoje em dia), tornei-me menos propenso a fazer julgamentos sobre pessoas e aprendi a nunca tirar conclusões apressadas, pelo menos sem ter toda a informação relevante. Hoje em dia, o meu discurso é muito mais rigoroso e muito mais claro, e sinto que exijo isso também dos que me são próximos (o que causa alguns problemas, por vezes). Ao mesmo tempo, acho que ganhei humanidade e humildade (também graças aos meus Mestres) e, claro está, sentido de Justiça.
Quando é que percebeu que queria ser professor?
Não sei exatamente, mas foi durante a licenciatura e logo nos primeiros anos. Alguns dos meus colegas pediam-me ajuda, de vez em quando, e isso não só não me incomodava como me dava gozo ser capaz de lhes explicar as coisas tal como eu as compreendia. Construí boas amizades à conta disso. Por outro lado, eu gostava tanto da Universidade que queria prolongá-la pela vida fora (como escreveu Machado de Assis). Não podendo ser estudante a vida toda, a alternativa era ensinar, nunca deixando completamente de ser estudante.
Para si, que características é que são fundamentais para o exercício adequado da profissão?
Aquelas que me parecem as características básicas são as seguintes:
Profissionalismo: tenho o dever de estudar e investigar para proporcionar aos meus alunos um ensino da melhor qualidade possível, sem falhas e sem desculpas, em termos científicos e pedagógicos.
Seriedade: a honestidade não se compadece com "intermitências"; é necessário ser honesto, verdadeiro e inteiro o tempo todo, em tudo o que se faz (como escreveu Ricardo Reis).
Rigor e exigência: primeiro comigo e depois com os alunos.
Em cima destas características, ajuda muito gostar de ensinar, ter um bom sentido de humor, facilidade em comunicar e em criar relações com as outras pessoas, ter um discurso claro e ser capaz de "descomplicar" sem simplificar, ser criativo, etc.
Para além de garantir o ensino das matérias lecionadas, que outras funções é que acaba por assegurar no seu trabalho? Por exemplo, ajudar os alunos a desenvolver o seu sentido crítico.
Ajudar os alunos a desenvolver o seu sentido crítico, sem dúvida, mas também estimular a capacidade de pensar autonomamente, a criatividade, a resolução de problemas, a capacidade analítica e o raciocínio abstrato. Sensibilizá-los para a importância de uma atitude profissional no exercício de qualquer atividade, a não se deixar nada ao acaso (naquilo que dependa de cada um de nós, pelo menos).
Tendo em conta a diversidade de estudantes e de assimilação da matéria, de que forma é que consegue adaptar o seu método de ensino?
Os métodos de ensino têm que ver com pedagogia, e isso não é muito importante no ensino superior em Portugal (gosto de pensar que a nossa Escola tem uma atitude diferente, a esse respeito). Assim, porque tive pouca formação em pedagogia (embora importante e decisiva em muitos aspetos), o que sei é muito construído pela minha experiência e resultado da minha reflexão.
Tenho a noção de que os métodos de ensino têm de estar alinhados com os objetivos de cada unidade curricular e têm de ser adequados a cada público.
Assim, o meu ensino na licenciatura está muito orientado para a aquisição de conhecimento e para a resolução de problemas (que é para que serve o Direito), o meu ensino no mestrado está muito orientado para a prática da advocacia de negócios (é uma cadeira de negociação e celebração de contratos) e para a resolução de problemas na negociação e o meu ensino no doutoramento está essencialmente orientado para a reflexão crítica, de preferência sem as amarras do direito legislado.
Os maiores desafios são na licenciatura, dado que leciono duas cadeiras (não muito fáceis) aos alunos do 1.º ano. É necessária muita clareza no discurso, muita orientação na leitura dos textos e no estudo em geral, muita planificação, muita disponibilidade para explicar as vezes que forem necessárias e muito cuidado na avaliação.
Quais foram os momentos que mais o marcaram ao longo do seu percurso profissional?
Acho que o que mais me marcou foi o exemplo e a influência dos meus Mestres. Tive a enorme sorte de ter tido professores verdadeiramente excecionais (não apenas na universidade), como pessoas e como profissionais, e tive, além disso, o privilégio de trabalhar com alguns deles. Quase tudo o que sei aprendi com os meus Mestres. Aprendi também muito com pessoas que não foram meus professores mas acompanharam o meu percurso académico e profissional.
No exercício da minhas funções letivas recordo frequentemente muitos exemplos e muitos conselhos de todas essas pessoas e tento passar esse legado aos meus alunos.
Qual é a sua visão para o futuro do ensino?
Ainda não tive tempo para fazer uma reflexão séria sobre o que deverá ser o futuro do ensino do Direito.
Sem essa reflexão, diria que, cada vez mais, o ensino deverá ser orientado para a aquisição, pelos alunos, dos fundamentos do pensamento jurídico e das matizes que este pensamento assume nas várias áreas do Direito. A partir daí, teremos de estimular nos alunos a capacidade de pensar, de aprender e de resolver problemas, tudo de forma autonóma. Será importante, ainda, desenvolver o pensamento crítico e a criatividade, estimular a capacidade de refletir para além dos limites postos pela experiência de cada um, do "state of the art", dos dogmas e preconceitos de cada sociedade ou grupo.
Tal como já defendi recentemente num artigo de opinião, outro aspeto muito importante será (já é) a literacia política e a capacidade de "ler e interpretar" a realidade.
Tudo isto com a ajuda da tecnologia. Não tenho qualquer dúvida de que os meios tecnológicos existentes (e outros que venham a ser desenvolvidos) serão cada vez mais um auxiliar precioso na prossecução daqueles objetivos.
Recorde o lançamento desta rubrica, onde a Professora Catarina Santos Botelho desvendou o seu percurso académico e profissional.
Durante o mês de abril, voltaremos a partilhar alguns momentos da carreira de outro docente. Fique atento!