
Conceição Cunha é docente da Faculdade de Direito – Escola do Porto. Desde os seus 17 anos na Católica, tem dedicado a sua vida ao ensino e investigação. É especialista em Direito Penal. Nesta entrevista fala-nos da importância da ressocialização e afirma que “nunca devemos desistir das pessoas, devemos sempre tentar reintegrá-las”. O que é que tenta transmitir aos seus estudantes? “Sensibilidade e bom senso. Se querem ser juízes ou advogados, têm de saber olhar para a pessoa que está ali e ter empatia com o seu problema.”
É licenciada em Direito pela Faculdade de Direito – Escola do Porto da Universidade Católica. Porquê escolher o Direito para a sua vida?
Tive muitas dúvidas na escolha do curso. Pus a hipótese de seguir Psicologia e, mais tarde, pensei em Línguas e Literaturas – cheguei a estar inscrita no 12º ano, nas disciplinas de Português, Francês e Latim, pois gostava (e gosto) muito de literatura. Mas também tinha interesse em Direito, embora não soubesse bem se o meu caminho seria por aí. O meu irmão estudava Direito em Coimbra e dizia que eu tinha jeito, mas talvez por esse motivo tenha resistido mais (risos). Mas recordo-me de me ter emprestado um livro chamado “O Advogado e a Moral”, com casos éticos difíceis, que achei muito interessante e teve um certo impacto na minha decisão.
Porquê escolher a Católica para estudar?
Uma amiga do secundário desafiou-me a assistir a umas aulas do curso de verão da Católica. Fiquei bastante entusiasmada com algumas das aulas a que assisti (em especial, uma aula sobre a aplicação da lei no tempo, lecionada pelo Doutor Taipa de Carvalho – com quem, curiosamente, depois vim a trabalhar) e decidi candidatar-me ao ano zero. Entrei! Mas mantive a minha matrícula no Liceu Rodrigues de Freitas no regime pós-laboral. Foi um ano bastante atribulado da minha vida, onde durante o dia fazia o ano zero da Católica e à noite estudava na área de Letras no Liceu.
“Gosto muito do contacto com os alunos, que nos renovam e nos ajudam a compreender os problemas atuais da sociedade.”
Ficou na Católica até hoje …
Sim, não saí mais de cá. Estou na Católica desde os meus 17 anos. Acabei por optar por seguir Direito e, durante o curso, fui muito feliz. Havia um ambiente muito bom de amizade entre as pessoas. Costumo dividir as cadeiras do curso em dois grupos: aquelas que me apaixonaram, porque mexem com a natureza humana - como o Direito Penal, a Filosofia do Direito, o Direito Constitucional e o Direito da Família - e outras mais técnicas, que achava interessantes, mas menos cativantes, como o Direito Fiscal ou o Direito das Sucessões (apesar de estas disciplinas também suscitarem questões ideológicas controversas). Gostava sobretudo das disciplinas que tinham a ver com as pessoas, com questões fundamentais de justiça e direitos humanos. No final do curso, fui convidada a ficar como docente.
O que é mais fascinante na sua profissão?
São vários os aspetos. Gosto muito do contacto com os alunos, que nos renovam e nos ajudam a compreender os problemas atuais da sociedade. A relação com eles sempre foi muito boa e valorizo esse diálogo constante. Também gosto muito da investigação, porque traz sempre novos desafios. Às vezes penso que, depois de tantos anos no mesmo lugar, poderia sentir monotonia, confesso que tinha esse receio no início da vida adulta, mas a verdade é que o ambiente e o ensino mudaram imenso e até a própria Faculdade. A Faculdade cresceu, o tipo de ensino evoluiu: de aulas teóricas e práticas passámos para aulas teórico-práticas, com uma dinâmica muito maior, análise de casos reais, apresentações e avaliações contínuas. Além disso, somos cada vez mais chamados para conferências, projetos nacionais e internacionais, o que nos coloca em contacto com diferentes realidades e áreas jurídicas e também com outras disciplinas e áreas do saber (curiosamente, tenho trabalho bastante com a área da psicologia, que, como disse, sempre me interessou). Tudo isto faz com que estes muitos anos na Universidade Católica tenham sido tudo menos monótonos.
O que é que diferencia o ensino da Faculdade de Direito?
O contacto próximo entre alunos e professores é uma das mais-valias. O sistema de aulas teórico-práticas, com turmas mais pequenas, facilita muito esse contacto direto e o diálogo. Além disso, a possibilidade da avaliação contínua dá aos alunos a oportunidade de escolherem trabalhar temas polémicos e apresentá-los. Isto torna o ensino mais dinâmico, aproximando os alunos do conhecimento prático. Ponho os meus alunos a trabalhar com acórdãos, a comentá-los, a analisarem casos concretos. Acho essencial preparar os alunos para a vida real, para os problemas concretos da profissão e para isso a dimensão da proximidade é fundamental. E que bom que é reencontrá-los mais tarde já no pleno exercício das suas profissões! Recentemente, estive em Cabo Verde para participar numa conferência e tive a alegria de encontrar antigas alunas cabo-verdianas, que tinham sido minhas estudantes na Católica há cerca de 20 anos e que agora são advogadas e professoras no seu país.
“Acredito na ressocialização.”
Nas suas aulas, para além de todo o conhecimento técnico, o que é que essencialmente transmite aos seus alunos?
Sensibilidade e bom senso. São essenciais. Se querem ser juízes ou advogados, têm de saber olhar para a pessoa que está ali e ter empatia com o problema das pessoas. Na minha área em particular, o Direito Penal, acho fundamental não perder a esperança. Podem dizer que sou utópica, mas acredito que não é utopia.
O que significa não perder a esperança?
Quanto mais visito prisões, mais falo com os seus diretores, conheço casos, mais acredito que o ser humano, apesar de poder ser violento e fazer coisas terríveis, tem uma parte essencialmente boa. É por isso que acredito na ressocialização. No Direito Penal, dizemos que a pena serve para proteger a sociedade e os bens jurídicos, e isso é fundamental, não estou a dizer o contrário, mas a pena também serve para ajudar o condenado a ressocializar-se, a melhorar. Estas duas funções, proteger a sociedade e ajudar o condenado não são incompatíveis e devem andar de mãos dadas. Muitas vezes, porém, as pessoas veem o sistema penal de forma simplista ou radical, e acham que é só prender ou não prender, quando o que realmente importa é garantir a segurança da sociedade através da reintegração. A melhor forma de proteger as vítimas e a sociedade é dar condições para que a pessoa que cometeu o crime deixe de ser um perigo. Claro que existem crimes horríveis onde a ressocialização é um enorme desafio. Há, também, pessoas com patologias ou doenças mentais graves que influenciam de forma determinante o seu comportamento e que exigem tratamentos especiais e muitas vezes para toda a vida. Mesmo nessas situações, com o devido acompanhamento, essas pessoas podem deixar de ser perigosas. Há também pessoas com perturbações de personalidade que não são graves ao ponto de serem consideradas inimputáveis, mas que precisam de tratamento e acompanhamento. Portanto, nunca devemos desistir das pessoas, devemos sempre tentar reintegrá-las.
“É fundamental atuar para quebrar estes ciclos de violência e maus-tratos e para dar às pessoas oportunidades de outra vida.”
Há alguma relação entre penas mais severas e diminuição da criminalidade?
Se olharmos para outros países, vemos que não são aqueles com penas mais severas que têm maior estabilidade social ou menos criminalidade. Pelo contrário, basta ver os Estados Unidos, onde há pessoas a cumprir penas de centenas de anos e a criminalidade não diminui. Por outro lado, países mais moderados, como a Noruega, que têm prisões pequenas e focadas na reintegração na comunidade, são exemplos de sucesso. O problema é que em muitos países há um grande fosso social que dificulta essa integração. Portugal está num meio-termo, não tem prisões do “terceiro mundo”, mas também não tem todos os apoios necessários. A questão é que, para combater a criminalidade, é preciso integrar as pessoas na sociedade, dar-lhes condições mínimas, para que não caiam no crime desde cedo. Isso leva-nos à questão da delinquência juvenil, que é crucial: quanto mais cedo se atuar, mais fácil é evitar a criminalidade. Por exemplo, em Inglaterra existem programas para agressores sexuais com uma taxa de sucesso de cerca de 70%, o que é muito positivo. Por isso, para além da parte técnica que naturalmente passo aos meus alunos, eu esforço-me por sensibilizá-los para os problemas sociais que estão muitas vezes na origem da criminalidade. É fundamental atuar para quebrar estes ciclos de violência e maus-tratos e para dar às pessoas oportunidades de outra vida. É preciso investir mais, sempre mais. Eu tento manter a esperança. Mas não uma esperança vazia, é uma esperança fundamentada e realista.
Pessoas em Destaque é uma rubrica de entrevistas da Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto.