
Mariana Vilas Boas é doutoranda da Faculdade de Direito – Escola do Porto da Universidade Católica Portuguesa. É, também, licenciada e mestre em Direito pela mesma faculdade, sobre a qual destaca um “ambiente académico muito enriquecedor”. Trabalhou na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, experiência que acabou por ser determinante para o seu percurso profissional. No seu doutoramento, está a investigar sobre o enquadramento jurídico-penal dos casos em que a vítima de violência doméstica mata o agressor. Descreve a sua experiência do doutoramento como “tempos de grande realização profissional e pessoal”.
Tem dedicado o seu percurso profissional ao tema do apoio à vítima. Quando é que surgiu a ligação a esta área?
A preocupação com a situação das vítimas de crime foi um ponto de partida. O trabalho que realizei na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), em Lisboa, permitiu-me ter um contacto privilegiado com esta área. Embora na Associação não tenha trabalhado diretamente com as vítimas, porque esse apoio e atendimento é maioritariamente feito por voluntários, o trabalho enquanto jurista, guiada por excelentes profissionais, foi uma oportunidade única para colaborar proximamente com o legislador, e sentir que o que fazíamos podia ter impacto na lei e na proteção de pessoas vulneráveis. Na APAV, ainda bastante jovem, participei na elaboração de pareceres sobre legislação, que eram solicitados à Associação, e estive presente em conferências e seminários, a representar a instituição. Ter esse papel foi gratificante e encorajador. A APAV não se dedica apenas à violência doméstica, tem como missão apoiar todas as vítimas de crime. Nesse contexto, pude trabalhar na área do Direito Penal, tendo em conta a perspetiva das vítimas de crime, perspetiva essa tendencialmente ignorada. Até recentemente, a vítima no processo penal não tinha qualquer papel, não eram tidas em conta a sua carência de proteção e as suas necessidades específicas.
Já antes, na Católica, tanto na Licenciatura como no Mestrado, houve momentos marcantes que determinaram este percurso. A minha orientadora de mestrado e atual orientadora de doutoramento, a Professora Conceição Cunha, alertava-nos para várias idiossincrasias da lei em relação a diferentes tipos de crime, nomeadamente crimes sexuais. Foi nessa altura que me apercebi, por exemplo, da forma como o crime de violação era regulado pela lei e entendido pela jurisprudência e do desfasamento entre esses entendimentos e o que considerava “justo”, ou até digno. Isso alertou-me para o papel que o Direito deve ter, também, em melhorar a vida das pessoas sujeitas à lei, protegendo-as.
Mas ainda teve uma passagem pela Advocacia …
Sim, no âmbito do Direito Civil, e percebi que esse não era o trabalho que mais me realizava. Paralelamente, pude manter a ligação à área do Direito Penal, colaborando com a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, particularmente quando surgiu a oportunidade de coordenar um projeto. O projeto consistia em simulações de audiências de julgamento de crimes de violação, direcionadas a jovens, com o objetivo de explicar em que consiste o crime, desmistificando e questionando alguns estereótipos socialmente aceites. O propósito era o de combater ideias, como por exemplo: “ela foi para casa com ele, logo estava à espera do que aconteceu”, “ela dançou e estava vestida de determinada forma, a culpa foi dela” ou ainda “ela é minha namorada, por isso tem de ter relações sexuais comigo”. A oportunidade de fazer o Doutoramento acabou, entretanto, por surgir e têm sido tempos de grande realização profissional e pessoal. Acredito que a realização profissional deve sempre passar pela realização pessoal, caso contrário, fica incompleta.
Quando é que surgiu o interesse pelo Direito na sua vida?
Gostava da área das letras, da Filosofia, da História e de Português. A entrada em Direito não foi fruto de nenhuma motivação específica na altura, mas sim da ideia de me formar numa área que, mais tarde, me permitisse ter várias escolhas. Fui à procura de uma formação abrangente. Curiosamente, durante a licenciatura fui ponderando, e já antes tinha pensado, na possibilidade de, depois do curso, trabalhar como jornalista. Foi uma vontade que se manteve ao longo da licenciatura, porque acreditava ter qualidades que se destacavam e que gostava de pôr em prática: falar e escrever. Por outro lado, já existia, na altura, uma componente motivacional ligada a certas causas. Interessava-me trabalhar sobre temas que considerava importante explorar e expor, procurando assim alguma mudança no que entendia ser injusto. O doutoramento permitiu-me, no fundo, pôr em prática aquilo que mais gosto de fazer. Naquela altura, ainda não sabia que tinha tanto gosto em estudar matérias de forma aprofundada, mas vim a descobri-lo com o tempo e com a experiência.
É não só, atualmente, doutoranda da Católica, mas, também, nossa licenciada e mestre em Direito. O que destaca deste percurso na Universidade Católica Portuguesa?
Existe um cuidado real com cada estudante, o que se traduz num ensino mais “personalizado” e atento. Além disso, temos na Católica grandes pensadores, pelo que o ensino é dotado, igualmente, de qualidade muito elevada. Há também pessoas profundamente preocupadas com causas sociais. Vive-se um ambiente académico muito enriquecedor.
Qual é o tema que está a explorar no seu doutoramento?
No meu doutoramento estou a estudar um tema bastante complexo: como enquadrar, como “tratar”, jurídico-penalmente, os casos em que a vítima de violência doméstica mata o agressor. Existem várias situações neste âmbito, algumas das quais, do ponto de vista “do cidadão comum”, parecem justificadas, mas que a doutrina e a jurisprudência penais têm, genericamente, encarado como ilícitas. A questão passa por perceber se a vítima atuou em legítima defesa ou ao abrigo de outras causas de justificação, ou se não, sendo a sua conduta ilícita, se esta lhe podia ser censurável.
A legítima defesa afasta a ilicitude e a condenação por comportamentos previstos como crimes. Alguns dos seus pressupostos, entendidos restritivamente, não se verificam em muitos destes casos, uma vez que, paradigmaticamente, estamos perante situações de pessoas maltratadas, às vezes ao longo de décadas, que não têm qualquer hipótese física ou psíquica de se defender no exato momento do ataque, ou por recurso ao meio menos lesivo para o agressor. Veja-se um exemplo: a legítima defesa pressupõe a atualidade da agressão; se a vítima se defende quando o agressor não pode reagir, por exemplo, quando está a dormir, entende-se, por regra, que a legítima defesa não se aplica, por a agressão já não estar em curso.
É um tema que já tem vindo a ser estudado?
Este tema tem sido muito estudado, particularmente nos regimes anglo-saxónicos, onde se analisou a reação das vítimas à violência doméstica, identificando padrões comportamentais que ajudam a explicar as atitudes defensivas, nomeadamente o homicídio. No entanto, esses estudos foram feitos e aplicados em contextos jurídicos muito diferentes do nosso. O que estou a tentar fazer é uma análise jurídico-criminal atenta à realidade criminogénea, estudada pelas Ciências Sociais; pensar a dogmática penal, em prol da salvaguarda de direitos fundamentais, em contacto com “o normal acontecer da vida”. Este trabalho passa também por analisar como a violência doméstica é tratada pela lei e pelos aplicadores da lei, questionando se o nosso sistema jurídico é efetivamente capaz de proteger as vítimas, evitando que estas tenham de cometer crimes para se protegerem.
Este tema implica um grande conhecimento acerca dos contextos em que ocorre a violência doméstica… Tem contacto e proximidade com histórias reais que a auxiliem na sua investigação?
A verdade é que, nos últimos anos, a violência doméstica tem sido um tema bastante discutido na esfera pública. Por isso, creio que toda a gente já está familiarizada, idealmente, com os contornos destes casos e, infelizmente, também com alguns estereótipos que acabam por culpar a vítima pela violência que sofre.
Conto com o apoio da Professora Catarina Ribeiro como coorientadora da área da Psicologia. Estas questões têm sido amplamente estudadas pelas Ciências Sociais, que têm produzido inúmeros trabalhos de análise e estudos estatísticos sobre violência doméstica e que muito me têm ajudado. É nesses estudos que eu me baseio, na sua análise das características do fenómeno, e não propriamente em casos isolados que conheça pessoalmente. Paralelamente, recorro aos casos julgados pelos tribunais e aos factos descritos, que espelham os contextos e as dinâmicas que envolvem estes crimes.
Como é que descreve o trabalho de um doutoramento?
O doutoramento exige, antes de mais, que realmente queiramos fazê-lo. No meu caso, tendo uma bolsa, posso dedicar-me a 100% à investigação, mas não tenho horários fixos para o fazer. Daí ser fundamental estarmos motivados, para que saibamos impor-nos prazos e objetivos.
Tem sido um trabalho contínuo e diversificado: escrever artigos, preparar comunicações, participar em eventos... A tese vai avançando, mas o processo é longo e, por vezes, é protelado, até o prazo “apertar”, como agora. Mas quando gostamos do que estamos a fazer, é muito gratificante!
Pessoas em Destaque é uma rubrica de entrevistas da Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto.